A entrevista a seguir, publicada originalmente no blog Vox em 6 de janeiro de 2015, foi a faísca que provocou a ideia de lançar a edição brasileira de Barbed Wire Kisses, a história do Jesus and Mary Chain e fez nascer, com isso, a Editora Sapopemba.
Segundos depois de enviar as respostas para esta entrevista, a inglesa Zöe Howe, autora de Barbed Wire Kisses, the Jesus and Mary Chain Story, foi surpreendida com um e-mail de um brasileiro perguntando por que seu livro não cita a primeira vinda da banda ao Brasil. Só que eu também havia perguntado isso e, conforme você vai ler na entrevista abaixo, ela não viu nenhum motivo pra ir atrás de informações sobre a primeira visita dos Reid ao Brasil, em 1990, durante a turnê do Automatic, terceiro disco da banda. Num papo rápido via chat do Facebook, já depois da entrevista, quando contei a ela que o dia 1 de agosto daquele ano foi uma espécie de turning point pra muita gente que foi ao Projeto SP, em São Paulo, ou também em outras datas da banda no Brasil (em Curitiba, quem esteve no ginásio do Círculo Militar diante da banda diz ter sido aquela uma experiência arrebatadora — houve quem seguisse a banda por endereços da cidade), Zoë achou estranho: nada mais corriqueiro para o grupo do que uma apresentação barulhenta, com a dupla bêbada tropeçando em cabos e se apoiando em amplificadores, e a plateia completamente hipnotizada pela tormenta distorcida rasgando o PA e enchendo o ambiente de eletricidade estática. Mas só quem viveu aquele período de vacas magérrimas de shows e informações sobre bandas um passo abaixo do mainstream sabe o que aquilo significou.
Barbed Wire Kisses… foi lançado no ano passado [2014] no exterior. Ainda não há versão em português, embora o mercado editorial brasileiro esteja hoje abarrotado — ainda bem — de biografias musicais estrangeiras. O livro de Zoë se dedica a entender o que foi e ainda é o Jesus and Mary Chain — ou Mary Chain, como costumam chamar lá fora — por meio da história de dois irmãos acometidos, na adolescência, por algum grau mais ou menos intenso de fobia social e que, acompanhados pelos amigos certos, Bobby Gillespie e Douglas Hart, empurraram os problemas comuns à idade com guitarras distorcidas mal tocadas e melodias pop inspiradas nos grupos femininos dos anos 60.
Ao virarem o pop do avesso e arranhá-lo com arame farpado, causaram estrago tamanho na música que chegaram a ser comparados aos Sex Pistols, o que não é pouca coisa se a gente lembrar da confusão que o quarteto criado por Malcolm McLaren causou no pop, música e comportamento. Se Steve Jones, guitarrista dos Pistols, escandalizou o Reino Unido ao soltar o primeiro palavrão ao vivo na TV em rede nacional, o baterista do Mary Chain virou as costas pro apresentador de uma emissora belga, durante uma entrevista, pra dar um belo de um malho em sua namorada. Como se já não bastasse o insulto dos primeiros concertos, de apenas 15 minutos do ruído mais ensurdecedor, quando a violência com que esmurravam instrumentos e reinventavam o pop explodia na plateia, que simplesmente arrebentava as salas das apresentações — segundo lembra Zoë, algumas dessas brigas foram protagonizadas por hooligans presentes aos shows.
Sem invencionices, Zoë vai da infância de Jim e William Reid, a amizade com Douglas Hart, primeiro baixista, cuja aparência, já no fim da adolescência, era a de um garoto de 12 anos; a distância entre os irmãos (William, mais velho, tinha outros planos pra carreira musical do que uma banda com o caçula); as primeiras gravações e a demo enviada por Gillespie a Alan McGee, fundador da Creation, a histórias cabeludas, como o perrengue que a banda passou na edição de 1992 do Lollapalooza, ao tocarem debaixo do sol escaldante do verão americano pra uma plateia desinteressada, que havia acabado de assistir, antes deles, à apresentação dos recém-estourados Pearl Jam, e a treta, durante o festival, de William com seguranças do rapper Ice Cube (que andavam pelos bastidores com pistolas d’água atirando em quem bem entendessem e que, segundo consta, tinham pistolas reais no ônibus da tour); as gravações de clássicos da banda, como o primeiro e adorado Psychocandy, o gótico Darklands, o semiacústico Stoned and Dethorned; as centenas de brigas entre os irmãos — incluindo episódios no palco — até chegar ao fim da banda; a troca de socos entre William e Ben Lurie, guitarrista que foi adicionado à banda a partir da turnê do Automatic, dentro de uma van, entre tantas outras, a distância entre os irmãos e o retorno.
Mesmo sem citar as aventuras da banda no Brasil e na América do Sul, Zoë soube detalhar, com requintes de observação e sem medo de escarafunchar detalhes talvez desagradáveis para os Reid, a vida de uma banda que tinha tudo pra dar errado. E que não teve o reconhecimento devido durante os anos mais intensos de atividade. Em conversa no final do ano passado com a revista Uncut, William prometeu um disco de inéditas, ou dois, para este ano.
Ao que tudo indica, o Reid mais velho não deu entrevistas para o livro — Zoë preferiu não entrar em detalhes sobre os personagens entrevistados, por não querer incluir questões pessoais. Mas ele protagoniza uma das melhores histórias do livro, e se você não quiser perder a surpresa de ler o ocorrido na biografia, pule desta parte direto para a entrevista: quando foi morar em Los Angeles, já nos anos 2000 e recuperado de um período longo de abusos químicos e etílicos,William comprou para a mãe um desses aparelhos que sintonizam centenas de canais de todo o mundo, o mesmo que ele tinha em casa. Detalhe: quando o filho trocava de canal em sua casa nos EUA, mudava também na TV da mãe, em algum canto de East Kilbride, na Escócia.
Quando você decidiu escrever a biografia do Jesus and Mary Chain?
Zoë Howe — Acho que foi em 2001. Recebi a notícias de que a editora estava interessada [na biografia] no dia do meu aniversário (três dias antes do William Reid, curiosidade para os fãs). Naquela época, não havia nada na agenda [do Jesus and Mary Chain] que se referisse a shows etc.. Me lembro da editora perguntar “será que vai haver uma turnê, o que você acha?” Sempre ajuda ter algo pra se planejar, mas não havia nada naquela época. Era o que eu tinha e, como se fosse mágica, a publicação do livro foi adiada. Foi sorte porque, alguns meses depois, Alan McGee me ligou pra dizer que ele estava retomando a Creation Management, assumindo o Mary Chain e que eles fariam alguns shows tocando oPsychocandy. O anúncio público [dos shows] foi feito na mesma semana em que o livro foi publicado — tudo sincronicidade pura! Muita gente acha que foi tudo deliberadamente amarrado, mas não foi. Era pra ser, eu acho. Esse tipo de coisa acontece muito, você está vivendo por sua inteligência a maior parte do tempo, institintos, e sorte e tempo, cruzando os dedos e tudo o mais, então se algo for adiado ou alterado, você não se queixa. Basta confiar.
Como os irmãos Reid reagiram ao lerem o livro? Você sabe se o William chegou a ler?
ZH — Não sei se William leu. Não sei nem se o Jim leu o livro. Sei que a irmã deles, Linda, leu e gostou, e isso significa muito. Douglas (Hart, primeiro baixista), Alan McGee, John Moore, Philip King e muitos outros envolvidos com o JAMC leram entusiasmados, o que é adorável. Mas pra ser justo com William e Jim, eu me sentiria um pouco estranha lendo um livro sobre mim!
Como está o relacionamento entre os dois agora?
ZH — Estive no backstage em um show em Londres, quando tocaram Psychocandy, em novembro [de 2014], e posso confirmar que [o ambiente entre eles] foi muito civilizado.
O Mary Chain tem uma posição significativa na história da música pop como um dos grupos de rock mais influentes. Você acha que eles são reconhecidos como merecem pela críticas e pela indústria musical?
ZH — Mais atualmente, sim. Mas houve um longo período em que não sentia que eles eram tão celebrados quando deveriam. Foi por isso que escrevi o livro.
Você deixa claro no livro que, embora os irmãos Reid tenham sido vistos durante um bom tempo como encrenqueiros, sobretudo depois da violência registrada nos primeiros shows, eles são caras tranquilos. Acha que a banda poderia ter sido maior do que de fato são hoje se coisas como as confusões naquele período inicial nunca tivessem acontecido?
ZH — As pessoas são muitas coisas ao mesmo tempo, ninguém é completamente selvagem ou totalmente bom, ou totalmente qualquer coisa. Mas a única coisa a ter em mente é que eles não estavam, em geral, na raiz dos distúrbios, em um sentido físico — com certeza eles podem ter provocado raiva no público pelos shows de 15 minutos, ou o ataque de barulho produzido pela banda poderia ter despertado em algumas pessoas uma espécie de loucura, mas não eram pessoas violentas e abominavam os tumultos [ocorridos nos shows], porém, ficaram associados à violência. Acho que talvez isso tenha afetado o modo como eles eram vistos no Reino Unido por um tempo; algumas pessoas passaram a ver os tumultos como uma espécie de golpe publicitário, e Alan MCGee admitiu que teve uma certa participação nisso atiçando as confusões a fim de conseguir mais alguns espaços nos jornais — e funcionou, é claro. Isso é muito [Malcolm] McLaren [ex-empresário dos Sex Pistols, morto em 2010], mas acho que eles [Mary Chain] são vistos de forma diferente nos Estados Unidos porque o público americano não tem essas referências.
A banda esteve no Brasil pela primeira vez em 1990, na turnê do Automatic. O show em São Paulo registrou alguns problemas de equipamento e quem compareceu se lembra do show como histórico. Mas não há menção a essa primeira vinda da banda ao Brasil e à América do Sul. Alguma razão específica pra isso?
ZH — Não há nenhuma razão principal, além do fato de que ninguém com quem conversei e que estava nessa turnê lembrou de histórias [da turnê]. Shows do JAMC com problemas não eram algo fora do comum, imagino. Se você fosse mencionar cada show do Mary Chain com problemas nos equipamentos, bebedeiras, brigas etc, você teria de estar aqui todo ano!
O que foi mais difícil de cortar dos originais na edição final do livro? Que tipo de histórias você teve de deixar de fora?
ZH — Deus, eu teria de voltar aos rascunhos iniciais. Escrevi um livro e outra metade desde então (Stevie Nicks: Visions, Dreams and Rumours e a futura biografia de Lee Brilleaux). Tenho um único grande espaço na minha cabeça! Mas sei que tive de cortar muita coisa já que eu tinha um número definido de palavras a respeitar. E tinham algumas memórias que alguns entrevistados me pediram pra não incluir… e meus lábios permanecem fechados.
Você escreveu outros livros sobre bandas e cultura pop. Qual o mais problemático deles?
ZH — Por que vocês sempre querem saber sobre as coisas mais difíceis? Não tem graça. são coisas que eu tentei esquecer!
Estou trabalhando na minha nova biografia musical agora e, claro, todos os livros tiveram momentos difíceis, mas eu tive mais momentos prazerosos que difíceis e quando você ouve que as pessoas gostam dos seus livros, pegando alguma coisa deles, dando de presente às pessoas ou levando-os para ler em viagens, isso torna tudo tão interessante que joga tudo pra cima!
Isso sempre envolve trabalho pesado, mas eu não me importo com isso. Amo estar presa a isso. Acho que em termos de desafio, qualquer biógrafo vai te dizer isso, você encontra personagens dúbios que aparecem e tentam te atrapalhar, gente indesejada que tenta pavimentar seu lugar na história, parasitas. Isso é showbiz. O negócio é manter gente boa ao seu redor e tentar não dizer sim para todos os compromissos, para que você possa fazer o seu trabalho. Por vezes é mais fácil falar do que fazer, mas você tem apenas que “seguir curtindo” – “to keep on chooglin” – como diria o Creedence Clearwater Revival (em “Keep on Chooglin”, faixa de Bayou Country, de 1969). É só colocar sua armadura psicológica e aprender a discernir. Se você está fazendo algo essencialmente positivo, é nisso que você tem de se focar.
Você espera ver o livro publicado em outros países? Alguma editora brasileira já te procurou pra lançar o livro em português?
ZH — Bem, essa não é uma decisão minha. Não estou sabendo de qualquer discussão sobre isso ainda, mas seria fantástico se fosse publicado no Brasil!
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