UMA CEIA DE NATAL
COM O COCTEAU TWINS
(foto: Laura Levine)
Ou quase. Em 1985, Chris Roberts, do The Guardian, passou uma tarde de sexta-feira com o então casal Elizabeth Fraser e Robin Guthrie, em um restaurante em Londres. Entre pratos de peru de natal, falaram sobre ser ou não famoso, impostos, gatos e uma briga em que "a voz de Deus" se meteu em um show punk em Amsterdã, onde o casal foi pra arrumar drogas.
"(...) Vimos peru de natal no cardápio, que foi o que Robin pediu. Peço a mesma coisa, porque assim posso dizer aos meus poucos amigos que tive uma ceia de Natal com o Cocteau Twins.
Liz pergunta, 'tudo bem se eu pedir duas entradas?'"
O trecho acima é um pedaço de uma entrevista com Elizabeth Fraser e Robin Guthrie, dois terços do Cocteau Twins, publicada originalmente pelo jornal inglês The Guardian em algum momento de 1985. Eles ainda eram um casal bastante jovem — ele tinha 23 anos; ela, 22 — quando o jornalista Chris Roberts passou uma tarde com eles no Chelsea Kitchen, um restaurante clássico londrino, no número 451 da Fullham Road. Um casal bastante esquisito, mas muito divertido. A entrevista é uma das coisas mais legais que o jornalismo musical foi capaz de produzir. Modalidade que, a cada dia que passa, parece ter ficado no passado.
Não poderia ser diferente: autores de discos definitivos da música pop britânica — pra muita gente, eles fundaram o Dream Pop; há porém quem credite a paternidade aos também ingleses AR Kane — , Treasure, Garlands, The Moon and the Melodies (com Harold Budd), Heaven or Las Vegas entre eles, não seria possível esperar que, naquele ano, quando haviam acabado de lançar dois eps obrigatórios, Tiny Dynamite e Echoes in a Shallow Bay ("odiamos os dois", disse Robin a Roberts), se tratasse de um casal normal. Aliás, se fossem um casal regular, não seriam o Cocteau Twins, e a entrevista seria um pé no saco.
A conversa não poderia ser normal, e o jornalista inglês percebeu isso logo de cara, naquela sexta-feira à tarde, quando não encontrou Liz e Robin no lugar marcado; em vez deles, viu um jovem George Michael entrar correndo num táxi e encará-lo. "'Oh', penso, 'vai ser um dia divertido'", escreveu.
Usando a velha estratégia conquiste-o-entrevistado-no-início-e-é-mais-fácil-que-ele-diga-o-que-você-quer-ouvir, o jornalista dá uma detonada na crítica britânica logo de cara. Segundo Roberts, incapazes de analisar a música do Cocteau Twins, os resenhistas apostavam sempre na mesma ladainha do "som etéreo radiante". Robin concorda. E embora Liz passe o resto da conversa se comportando como se sua timidez/fobia social fosse tão absurda que a ela só restaria se desculpar pelas coisas ditas por impulso, o casal já estava conquistado. Então eles relembram a vez em que, em um programa da BBC, foram confundidos com o Frankie Goes to Hollywood, a ponto de a apresentadora perguntar a Robin, "como é ser bicha?"
Lembram ainda de uma vez em Amsterdã, quando foram a um show da banda punk GBH, uma garota holandesa riu deles, e então a doce Liz, a "voz de Deus", segundo a crítica britânica, partiu-lhe a cara.
Liz: na verdade, eu sou uma pessoa muito violenta. Isso realmente me irrita.
Robin: fomos assistir ao GBH em Amsterdã. Fomos pra conseguir drogas, mas isso é outra história, vamos falar sobre isso depois... Bom, estávamos subindo as escadas e uma garota holandesa começou "hahaha", algo assim, então Elizabeth agarrou os cabelos dela e a chutou na cara.
Liz: não, não, não! Não foi assim mesmo. Ela foi muito venenosa comigo. Ela não gostou de mim. Não gostou.
Ou de quando flagraram Johnny Rotten e um ator completamente bêbados em um bar de hotel em Nova York. O que, segundo Robin, fez com que Liz quase se molhasse de tanto rir.
Liz: foi incrível!
Robin: Foi nojento. Ela estava gargalhando e tudo o mais.
Liz: eu sei, eu estava agindo como uma idiota. Mas foi maravilhoso!
Roberts: vocês se consideram famosos, certo?
Liz: definitivamente não. Quase ninguém sabe quem somos. Quase ninguém.
(Roberts garante que o garçom que anotou os pedidos os reconheceu mas manteve a discrição.)
Robin: com quem você se impressionou mais hoje, nós ou George Michael?
Liz: tem peru nisso?
Roberts: sim, está debaixo do molho ali.
Robin: você falou com George Michael?
Roberts: eu? Não, por Deus, não, não falei com ele. Foi estranho porque vocês não estavam lá, então pensei oh, vou dar uma conferida na rua, e a primeira pessoa que me aparece foi ele...
Então Robin, o gênio por trás de parte das texturas mais incríveis que um ser humano já criou com um guitarra, resolve aproveitar a conversa com o jornalista do Guardian pra reclamar do garçom e do prato que pediu: "bastardo mentiroso. Disse que tinha ervilha e repolho nisso."
Liz: oh, oh! Tô vendo o peru agora!
Robin: esquece.
Roberts: a vida de vocês é muito diferente do que era dois anos atrás?
Liz: yeah!
Robin: não.
Liz: é sim. Dinheiro e outras coisas.
Robin: yeah, a gente não pagava nenhum imposto dois anos atrás e agora é terrível. Agora você vai saber o lado ruim dessa coisa de impostos. A entrevista inteira será sobre pagar imposto.
"Oh, acho que não", pensa Roberts. No som ambiente, "I'll be there", do Jackson Five.
O mais impressionante da entrevista é pensar na banda que criou para si um gênero musical, que contava com a "voz de Deus" como vocalista e que gravou discos que inspiraram o nascimento de milhares de bandas pelo mundo, falando sobre trivialidades como um prato de peru, os impostos no Reino Unido, uma briga de socos em Amsterdã e resumindo a própria música como "feita pra trepar".
E é curioso por ser justamente em 1985, ano seguinte ao lançamento de Treasure, e ano em que o pop viu lançamentos como Meat is Murder, dos Smiths, Psychocandy, do Jesus and Mary Chain, Songs from the Big Chair, do Tears for Fears, Low Life, do New Order, Songs to Learn and Sing, do Echo and the Bunnymen, The Head on the Door, do The Cure...
Garçom: mais alguma coisa?
Robin: crumble de maçã com creme, por favor.
Liz: você quer algum desses? Eh? Oh! Er... um... cheesecake de cereja, por favor.
Robin: Ooh... talvez eu peça um depois.
"Eles não são exatamente indiferentes", analisou Roberts.
Liz Fraser e Robin Guthrie se separaram em 1993, mas a banda seguiu até 1997. Em entrevista ao mesmo The Guardian, em novembro de 2009, Liz disse que não conseguia mais imaginar a possibilidade de trabalhar de novo com o ex-marido e pai de sua filha, Lucy Belle Guthrie.
Confira a entrevista na íntegra: https://www.theguardian.com/music/2012/jul/31/cocteau-twins-classic-interview